5 de nov. de 2012

Incrustado

Raphs tinha um cabelo azul anil, assim como o céu sem nuvens num dia de verão. Ele era um artista de um circo que se locomovia pelo velho trem de maria-fumaça. Toda manhã de viagem ele enfiava a cabeça para fora da janela e aproveitava o vento que batia no seu rosto, e se sentia bem. Depois tomava seu café, e esperava o trem parar em alguma cidade. Geralmente o circo ficava uma semana montado. Então ele praticava seus contorcionismos na barra e era muito bom nisso.
_Raphs! Tá na hora do almoço, vamos até um restaurante dessa cidade.
_Tudo bem, vou ficar aqui... Não estou com fome.
Raphs jogou seu braço por trás da cabeça, depois sua perna entre as pernas. Tentava fazer novos movimentos mas parecia que todos ficavam iguais. Ele foi até o camarim, pegou um espelho e o levou ao palco onde treinava. Se olhou por inteiro e recomeçou os exercícios. No instante que recomeçou, notou algo estranho no espelho.
Sua imagem permanecia parada com o dedo na frente da boca, como se estivesse pedindo silêncio. Raphs se mexeu intensamente, balançou o espelho e até foi pra outro lugar e voltou, mas sua imagem continuava congelada.
_Sua alma está presa.
Raphs tomou um susto, olhou pra trás e viu um homem.
_Já vi vários desses casos. - disse o estranho - Mas o seu é bem incomum. Nunca vi um pedindo silêncio. As almas geralmente param gritando ou de olhos fechados.
Raphs, supreendido, não dizia nada.
_Você deixou alguém que amava para trás?
Raphs olhou para o chão e respondeu:
_Meu coração ficou na minha cidade quando comecei a seguir o circo.
A boca da alma no espelho se abriu, como se fosse morder o dedo. Raphs arregalou os olhos.
_Ela só está reagindo a conversa. Me parece que você ficou bastante tempo sem conversar com você mesmo.
_Eu não me lembro de ter feito isso.
_Mas voltando ao assunto, porque você deixou seu amor para trás?
Raphs coçou a cabeça.
_ Eu tive que deixar pra seguir o que eu gosto. Mas morro de saudades. No início parecia fácil, mas está sendo muito difícil viver essa vida.
A alma tapou um dos olhos com a mão que não estava próxima a boca aberta e Raphs sentiu uma pontada no peito. Seus olhos encheram de lágrimas.
_O que você sente, exatamente, aí dentro Raphs?
Raphs se assustou porque aquele jovem homem sabia seu nome, mas não se importou. Desabafou.
_Eu não consigo viver sem sentir amor. Aqui eu só tenho reconhecimento. Pessoas me aplaudem quando termino meu espetáculo, mas não há um ser que diga pra mim um "eu te amo". Eu sofro com isso. Antes de entrar pro circo, eu sentia amor, viva sonnhando. Hoje só sonho em amar. Me apaixono e me desapaixono em instantes.
As lágrimas caíam dos olhos de Raphs como um cachoeira com pouca correnteza. O homem só olhava firmemente. A alma abriu os braços e inclinou a cabeça para baixo.
_Minha alma está me deixando assustado - Raphs disse com a voz fraca.
O jovem homem o abraçou repentinamente e de supetão, o que fez Raphs estranhar, mas logo ele se entregou ao abraço. A alma levantou a cabeça lentamente, fechou os olhos e se abraçou.
O menino de cabelo azul sentiu uma energia incrível vindo daquele homem e não queria desgrudar. A alma se abraçava cada vez mais forte. Raphs começou a tremer e se entregava cada vez mais ao abraço apertado do estranho jovem. A cada fisgada que o coração do artista sentia, a alma se abraçava mais forte.
_Me solta por favor! - Raphs gritou porque uma dor inssesante o atingiu - Está me machucando! Me solta!
O coração dele pulsava cada vez mais forte, em um ritmo acelerado, batida por batida. Ele foi suando e o homem não o soltava. Então o garoto contorcionista soltou um gritou tão forte e ao mesmo tempo o espelho se quebrou em milhares de pedaços. O homem o largou imediatamente.

_Sua alma foi libertada. Nunca mais deixe de conversar com ela.
Raphs ainda estava no chão, mas arranjou forças para dizer:
_Qual o seu nome? Quem é você?
O jovem estranho sorriu iluminadamente e disse:
_Ehyeh Asher Ehyeh. Eu sou o que sou.
O circense ficou deitado no chão entre os cacos de vidro e viu o homem caminhar lentamente e sumir entre a luz do sol que entrava pela tenda. Só depois de algum tempo Raphs percebeu com quem tinha passado aquele tempo. Sua alma estava libertada e ele sentia isso. Era uma sensação de frescor interno e leveza do corpo, além da vontade de sorrir eternamente. Conversar consigo mesmo virou uma tarefa diária e a cada vez que fazia isso, Raphs sentia a energia do jovem estranho.
Nunca deixe sua alma congelar. Você pode. Você é.

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